domingo, 10 de novembro de 2013

10/11 - Istanbul

Último dia da viagem hoje, com um restinho de turismo feito já com o traseiro meio contraído, com medo de dar alguma zica e perder o avião. Ainda tentamos dar uma cruzadinha pelo estreito de Bósforo de barco mesmo, já que ontem, depois de andarmos uns 40 km para alcançar a ponte, descobríramos que não havia acesso a pedestres por ela. Como não chegou a surpreender, as fichinhas da catraca pro barco da ida eram diferentes das do barco da volta, meio como se o bilhete único para o 817H Pirituba fosse diferente do bilhete único para o 828P Pompéia. E nesta se vão 6 liras enfiadas na bunda comprando fichas que não puderam ser usadas. Um sexto da grana que embolsamos com a comida de bola do cara de ontem. Já no caminho para o aeroporto, a patroa teve a idéia de doá-las a algum pedinte. E a mulher sentada na escadaria da estação, com a mão meio imunda estendida, olha feio e nos dirige aquela expressão condescendente quando as recebe. Vaquinha.


Feitas as contas, foram inacreditáveis 15 cidades em 30 dias. Um pinga-pinga injustificável, coisa de quem quer abraçar o mundo uma fatia por ano, até que a morte me leve, e nada disto faça mais nenhum sentido mesmo. Algo que a cada fim de viagem eu prometo a mim mesmo que não voltarei a fazer só para, logo em seguida, fazer novamente. Meio como trepar sem camisinha.
30 dias com os mesmos tênis nos pés, com exceção de umas poucas horas da maratona, quando calcei os de corrida.... Um puta-merda comprado meio pra quebrar o galho na Islândia quando a bota de frio que era meio patrimônio familial se desfez, mas que vem segurando a onda legal este tempo todo... Duas cuecas que viraram trapos e duas que voltam bem surradinhas da viagem, e uma calça que se desfez ali no campinho, mas ainda bate um bolão se receber o devido reforço e remendo.


E agora é mais um ano de barriga crescendo, cabelo caindo, alma envelhecendo, muito trânsito, sol, calor e despropósito. Ano que vem provavelmente tem mais viagem, com um monte de elementos ainda um pouco mais anacrônicos neste meu impasse com uma existência cuja correnteza me recuso a permitir me levar, e que, por sua vez, se recusa a me abandonar. Valew aí, mano.


09/11 - Istanbul


Bom, hoje foi o dia da vingança. Tá, teve mesquitinha, parquinho, briguinha, barquinho, e todo o resto do dia-a-dia turístico em seus derradeiros momentos, já sob o peso da volta ao massacre do cotidiano regulamentar. E então, à noite, ao voltar ao hotel, passamos por uma das conspícuas docerias para comprar as quantidades indecorosas de açúcar que nos arrependeríamos de ingerir depois. Para uma compra de umas 21,43 liras, tento facilitar a vida do cara, entregando a ele 50,45 liras. Como aparentemente é tão comum em qualquer outro lugar que não o Brasil, o sujeito coça a cabeça, começa a ter palpitações, põe o dedo na boca, tem uma convulsão com liberação esfincteriana e me devolve de troco, além das moedinhas de 45 centavos, a esdrúxula e incompreensível soma de 110 liras. Foi o dia de lavagem da alma, em que me vinguei de toda a esperteza turca, dos preços que nunca são bem aqueles, dos acréscimos súbitos na conta, da abordagem predatória ao cliente que passa na frente da lojinha. Ao longo do dia, uma vendedora de flores já havia jogado uma rosa no colo da patroa, na tentativa de tornar a aquisição irreversível. A rosa foi ao chão, e nossa sede por retribuição já esquentou um tanto. Pouco depois, um engraxate que havia derrubado uma de suas escovas enquanto andava em nossa frente, que peguei do chão e lhe devolvi, me cobrira de agradecimentos, insistido para eu botar o pé naquela caixinha e molhado meu TÊNIS com uma aguinha imunda, esfregado com aquela escova coberta de GRAXA e depois me pedido uma graninha pelo serviço! 


Mas então me perguntará você, caro não-leitor, que culpa tem o pobre balconista da doceria por tudo isto? Terá ele feito algo de errado além de demonstrar certo analfabetismo aritmético? Os atos de espertezinha não são eventos isolados, intransferíveis e não-generalizáveis para um determinado país ou cultura? E atitudes como a minha não só colocam todos nós no mesmo saco, nos nivelam moralmente por baixo, subtraem de mim a autoridade moral para criticar o comportamento alheio e confirmam como o homem é o lobo do homem e que a moeda vigente nas relações humanas é somente o egoísmo que favorece a sobrevivência e a propagação dos genes?
Bom, talvez eu possa recorrer ao misticismo, ou pudesse, se tivesse mais talento e menos neurônios para o levar a sério. De repente, existe um karma cósmico, e está tudo conectado. Todos os turcos espertinhos ao longo dos últimos dias acumularam um pouco mais dele, eu tive a chance de debitar parte do meu e não o fiz. Pelo contrário, aumentei meu passivo cármico, e agora vou reencarnar como uma barata cascuda em minha próxima vida. E o carinha da doceria talvez tenha conquistado o direito de encarnar como um futuro filho de Ana Paula Arósio. Significaria passar uma única vez pela xoxota dela, e ainda no sentido errado, mas não é de todo ruim....


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

08/11 - Istanbul

Em que pese todo o caos vigente no cotidiano deste país, com tanta gente se acotovelando pelas ruas, a inexistência de qualquer respeito por leis de trânsito, o risco de beber água da torneira e as inenarráveis privadas de chão, sem sequer um rolo de papel higiênico pendurado na parede, mas uma bica d'água e uma canequinha ao lado, ao menos uma bela vantagem a Turquia tem: os pontos turísticos aqui são mesquitas e mais mesquitas e mais mesquitas. Nada daquele tédio das mesmas igrejas católicas de sempre. 


E uns 4/5 da cidade parecem ser uma contínua e interminável rua 25 de Março. O resto são as mesquitas e restaurantes de gente malandra, com aquele marketing agressivo de te agarrar pelo saco quando você está passando pela rua e, sem soltar, tentar te convencer de que a comida deles é o máximo, só para depois te cobrar couvert e garrafinha de água não solicitados, e que deram a entender ser oferta da casa. Aconteceu hoje.


Hoje, sexta-feira, dia sagrado dos muçulmanos. Passamos por mesquitas bem na hora de uma das 834 orações diárias. Milhares e milhares de homens (muçulmanas não rezam?) ajoelhadinhos descalços no tapetinho conversando com Alá. Pacíficos, nada agressivos ou incomodados com nossa presença, mas ainda assim é tão desesperadoramente bizarro... Boa parte daquela gente deve ter tido acesso a informação suficiente para transcender toda esta bobagem, mas continua participando alegre e acriticamente do ritual, orando para um deus que não os escuta, acreditando numa moralidade e num senso de propósito que dois segundos de reflexão honesta golpeariam tão mortalmente. E eu aqui aprisionado nesta massacrante comédia humana, e desesperançado da possibilidade de algum dia ser resgatado de volta a um planeta de gentes e modos mais razoáveis...


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

07/11 - Istanbul

Bom, a boa notícia é que os intestinos não se manifestaram dentro do ônibus. A má é que a bexiga, sim. O que é ainda mais decepcionante em certo sentido. Digo, o número dois pode ser uma demanda inegociável e feroz da natureza, uma urgência que não aceita qualquer forma de compromisso ou adiamento, e então nada nos resta senão nos resignarmos a seus malcheirosos caprichos. Já o número um é coisa insidiosa, cumulativa, que não se manifesta com a explosividade de uma blitzkrieg fecal, mas de forma crescente, contínua, cumulativa, até que finalmente também nos derrota e nos faz gastar uma lira turca pra dar um mijão na parada do ônibus. Pagar para fazer algo que já nos humilha fazer de graça dá bem a noção da verdadeira natureza humana: somos apenas um monte de excremento recoberto por uma película de estética frágil e precária.


Pela manhã, ao chegar a Istanbul, mais da chuva, que havia nos dado uma trégua nas últimas duas semanas. E o metrô não integrado ao tróleibus, tendo que pagar tudo duas vezes. E o hotel que não nos permite entrar no quarto logo cedo sem cobrar adicional, deixando-nos literalmente na chuva, molhados, emputecidos, com os dedos dos pés se enrugando. Aproveitamos então para ir comprar os protocolares presentes de viagem no Grande Bazar, mercadão coberto com umas 4000 lojinhas cheias de turcos que repetiam a palavra "obrrrigado" a cada vez que dizíamos ser brasileiros. Já foi pior, em outros carnavais a reação era dizerem "Ronaldinho". Todos muito ostensivos, se aderindo ativamente ao cangote assim que chegávamos suficientemente próximos para sofrer o efeito desta estranha força de atração, forçando situações de negociação e pechincha, manifestando certa indignação não de todo falsa quando a venda não se consumava.


Depois finalmente conseguimos entrar no quarto do hotel, um cubículo sem janelas não muito diferente de uma cabine interna de segunda classe num navio, mas com uma temperatura de uns 52 graus, porque os controles remotos dos condicionadores de ar haviam sido mandados para a assistência técnica. Já antevi 3 dias de indescritível suplício, mas após protestos conseguiram sequestrar o controle de um dos quartos aparentemente vagos, e a coisa teve final quase feliz. Mudar-nos para o outro quarto, com janelas, nem pensar. 


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

06/11 - Ankara

Como dizem os adesivos de parabrisas, shit happens. Às vezes, bem literalmente.
Em Ankara, ficamos hospedados num hotelzinho pra valer, destes com o tio que carrega as malas e tudo. Decadente, mas nada destas coisas de bed and breakfast, ou cadeia de hotel. Tinha, portanto, como raro nesta viagem, café da manhã incluído. Nada grande coisa, mas com direito a muitos queijos, que teriam, imagino, participação crucial nos eventos que se seguiriam. 


Mesmo antes de sair do quarto pra ir bater perna, meus intestinos já deram sinal de vida... Não uma, como seriam convencional, não duas, como seria ainda aceitável, mas ainda uma terceira vez, com aquele retrogosto que me fez me indagar se uma vingança de Montezuma, ou de Atatürk, não estava a caminho. 


Mas foi uma manhã peristalticamente normal, com um almoço farto e barato com aquela comida turca meio indiferenciada de sempre, com uma carne tipo kebab, alguma variação de uma massa meio folhada com alguma coisa a recheando, e muita salada e pimenta. Seguimos então para visitar a Cidadela, basicamente uma favelinha meio desabitada encastelada por muros num lugar alto pra burro. E então, quando apreciávamos de cima a pobreza e desolação da cidade ao nosso redor... Tadãã... Cólica súbita, forte, acompanhada de, como diziam na faculdade, puxos e tenesmos.... Eu nunca consegui entender com clareza o que estas duas palavras definiam, mas devia ser algo apontando para a iminência de uma tragédia prestes a se concretizar. E eu lá, no meio de lugar nenhum, sem nada vagamente semelhante a um banheiro à vista.
O desespero nos torna determinados, e não hesitei. Pedindo vigilância à pobre patroa, corri para um beco relativamente escondido e, num ato de afogadilho gastrointestinal, jorrei sobre a parede do cantinho uma generosa quantidade de material fecal liquefeito, rapidamente seguida pelos providenciais lencinhos umedecidos que a patroa carregava em sua mochila de 1001 utilidades.


Depois, mais um refil se apresentou para o serviço já dentro do cinema onde finalmente conseguimos encontrar filmes não-dublados em turco. É impressionante: na Turquia, os filmes são apenas legendados. Na Alemanha, teoricamente mais fluente em inglês e mais alfabetizada, tudo dublado. 


E a noite vai ser passada dentro de um ônibus, a caminho de Istambul, ao que tudo indica sem banheiro. deus me dê forças e tônus esficteriano.



terça-feira, 5 de novembro de 2013

05/11 - Ankara

E cá estou na Turquia, desafiando meu desconforto antigo com um lugar que sempre me pareceu já religiosa e moralmente fundamentalista demais. Mas, sinceramente, nem foi o que me pegou hoje. Pelo menos aqui na capital não parece haver necessidade de algum cuidado de conduta redobrado, e a Istambul isto deve se aplicar mais ainda. Na verdade, a Ucrânia me pareceu mais policial e tinha um ar mais totalitário, a mesma impressão que a Rússia me causou um tempo atrás. Aqui, mais do que totalitarismo, percebo ausência. A cidade parece um enorme e contínuo Bom Retiro, cheia de gente, cheia de carros, uma quantidade enorme de lojinhas de cacarecos, os buracos pelas ruas e calçadas, lixo no chão. O conceito de fila, desde o aeroporto, é virtualmente inexistente. As pessoas avançam uns 3 metros na faixa de pedestres e lá ficam, obstinandamente esperando o sinal abrir, desafiando os motoristas que passam, os quais, por sua vez, igualmente também não respeitam os pedestres.


Na comparação com os belos (e principalmente as belas) caucasianos, um povinho mais feioso, narigudo, eu diria meio sujinho, até. Muitas senhoras vestindo lenços e burcas, para tentar impedir a visão daquilo que, convenhamos, ninguém está muito interessado em espiar mesmo, e que não corre o risco de inspirar a lascívia de outrem nem mesmo se pintado com canetinha fluorescente e salpicado de glitter cor-de-rosa.


A questão da comunicabilidade é um pouco menos desesperadora, pareçe que mais
gente fala ao menos algum rudimento de inglês, e sem dúvida se esforçam mais para fazê-lo. O alfabeto é mais próximo do nosso, então as coisas são mais legíveis mas, em compensação, menos compreensíveis, porque pouquíssimas palavras têm raiz comum com o português ou inglês, então simplesmente não há como chutar o que significam. No aeroporto, ao saber que somos brasileiros, o simpático carinha das informações turísticas começa a cantarolar 'Copacabana', e pergunta se o nome dela era mesmo Lola. Eu jamais poderia imaginar que algum dia fosse inspirar uma associação direta com Barry Manilow. E o pior é que eu até que gosto dele.


Ah, e o câmbio de dinheiro tem, pela primeira vez, uma comissão, salgada, de 4%. Ladrôes.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

04/11 - Odessa

Ainda traumatizados pela perda das fotografias tiradas ao longo de toda a viagem, nem voltamos hoje ao funesto local para ver se o carinha do passeio pela cidade desta vez estaria lá. Em vez disto, fomos às catacumbas de Odessa, sistema de túneis cujo único trecho visitável por turistas está lá lonjão, a uns 15 km da cidade, mas que, diz a lenda, tem uns 2500 km de extensão, inclusive embaixo do próprio centro da cidade. Diz outra lenda que o intestino tem uns 5 metros de comprimento, mas nunca acreditei que aquilo tudo pudesse caber dentro de uma pança humana, nem mesmo da minha. Diz ainda outra que temos uns 5 litros de sangue em nossos corpos. Difícil de acreditar também, já que desidrato uns 3,5 litros fácil em cada longão de corrida, e ainda assim consigo chegar em casa quase inteiro, e não em franco choque hipovolêmico.


Tivemos a dificuldade de sempre para conseguirmos nos informar se o lugar estaria mesmo fechado às segundas-feiras, como diziam alguns sites de internet, sem conseguir falar com a moça da recepção do hotel, e falando pobremente com um rapaz de agência de turismo na qual entramos a esmo, e que deu vagamente a compreender que o local estava aberto sim. Sem grupos de turistas agendados para hoje, contudo, quase ficamos só olhando de fora, mas um dos guias locais apareceu em nosso socorro, para, por um valor levemente indecoroso, nos oferecer uma visita privativa "em inglês", ou algo decorado e, como já tradicional, meio displicente e mal-humorado, que a isto se assemelhava. 


No resto do dia, pequenos mimos como comer razoavelmente barato num restaurante oriental bacaninha e, como sobremesa, sorvete Baskin & Robbins. Às 5 da tarde, o dia já estava escuro. Mas, por excessão, a internet neste hotel é excelente, e tenho um monte de coisa pra assistir aqui no iPad, então não tivemos muito tempo ocioso nem pra dar uma brigadinha. 


Agora, a partir de amanhã, é um terceiro mundo diferente, e o luto pelo fim das férias e a volta à rotininha e o calor massacrantes de sempre já começa a se pronunciar vigorosamente.


domingo, 3 de novembro de 2013

03/10 - Odessa

Bom, e hoje deu merda.
Digo, num certo sentido, dá merda o tempo todo, só os mortos e a samambaias não sofrem. Mas como deus é um cara sacana e cruel, com um senso de humor doentio e pervertido, às vezes a bosta aguda se sobrepõe às fezes de fundo, e voa tudo no ventilador da existência. 


Pela manhã chegamos ao local de onde sairia o passeio gratuito de Odessa. Se em Kiev a coisa já teve algo de meia-boca, aqui faz sentido que fosse um pouquinho pior. E foi. O cara simplesmente não apareceu. Enquanto apagávamos fotos antigas para liberar espaço na câmera, procurávamos por um cara com uma bandeira azul que não existia, sob o assédio de pessoas oferecendo cacarecos, excursões ou fotos com pombas e gaviões nos braços, e empurrando papeizinhos e propagandas contra nossos rostos, como varejeiras que cismavam em voar ao redor daquilo que logo em seguida aconteceria. E então, subitamente, as fotos não estavam mais lá. Memória da câmera mais vazia do que uma ampola retal depois da ingestão de 23 comprimidos de lactopurga. Ainda não sei bem como, havíamos apagado todas as fotos da viagem até o momento. Toda a lembrança de nossas férias restava agora apenas em nossos cérebros, para de lá ir desaparecendo gradativamente, rumo ao mais inelutável oblívio. 


O jogo do contente não parece dar conta. É muito provável que as fotos fossem ficar lá esquecidas numa pasta de computador para sempre, ou só servir para serem vistas num daqueles almoços chatos de família nos quais, na verdade, ninguém está com muito saco para mostar ou ver fotos. Mas, ainda assim, sua perda dá uma sensação de perda da própria viagem, já que aos poucos os detalhes dela desaparecerão de nossas sinapses, e agora não há nem mesmo fotografias das quais daqui a uns dois anos nos sentiríamos esvaziadamente desconectados, distantes, mas que poderiam ao menos remeter a um ou outro fragmento de lembrança ainda recuperável desta fossa mnemônica que é nosso cérebro e nossa própria identidade.

Hoje tenho um pouco menos de simpatia por aqueles que criticam quem viaja para algum lugar para fotografá-lo, mais do que para experienciá-lo. A experiência é efêmera, tudo o que dela resta é a memória, que também desbota, esmaece e se evapora, e então o que atesta que de fato ela aconteceu? Talvez por isto seja tão fundamental grudar chicletes embaixo de todos os bancos e mesas por onde passamos.... É essencial ancorar a presença, cristalizar o evento, marcar o espaço que ocupamos em algum momento com a cicatriz que nos for possível nele deixar!


E depois, à, noite, já um pouco mais resignados com a perda e esperançosos com ainda ser possível recobrar a informação de dentro do cartãozinho de memória, porque a vida é embebida nestas pragas que são a resiliência e as estratégias de defesa, fomos à Ópera. Balletzinho, o 'Quebra Nozes', por 3 euros por cabeça. Convencional até a pontinha do último pentelho da bunda da bailarina, com o som das pontas das sapatilhas batendo no chão só superado pelas falas e ruídos dos singelos ucrianianos ao osso redor, e o espoucar dos flashes das câmeras fotográficas comendo solto. Tosqueira pura. Valeu o quanto custou.

02/11 - Kiev


Minimamente menos acovardados pela incomunicabilidade e pela postura média bastante rude dos habitantes, fomos hoje participar da versão local das free walking tours disponíveis em várias cidades européias. Como previsível, aqui a coisa foi mais precária, com uma guia não exatamente fluente em inglês, às vezes nitidamente assustada e desconfortável com a missão de vomitar ansiosamente um texto meio decorado e pouco espontâneo. Mas eles chegam lá, e não deixa de ser participar de um momento histórico estar presente neste estágio ainda meio tosco da iniciativa.


Depois, à tarde, repetição do almoço no restaurante self-service de comida local, lotado de gente igualmente local, sentindo-nos como cidadãos soviéticos na longa fila da farinha, ou vodka, ou sei lá o que era distribuído.


E, pra fechar o dia com a necessária dose de bizarrice, embarcamos no trem noturno para Odessa, na cabine leito com outros dois estranhos antipáticos dentro. O trem chacoalha pra caralho, o banheiro é um nojo, a ferromoça é tesudinha mas igualmente mal-humorada e monoglota, mas é um luxo passar a noite dormindo em algo semelhante a uma cama, e não, como até aqui na minha vida ferroviária, tentando encontrar posição esparramado em duas poltronas livres, ou nem isto.


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

01/11 - Chernobyl, Pripyat (Чернобыль, Припять)

Pronto, hoje foi dia de Chernobyl.


No ponto de encontro, fomos recebidos pelo guia turístico mais escroto do planeta: lacônico, mal-humorado, anatomicamente incapaz de dar um sorriso, com comentários de uma agressividade e condescendência tal que tenho dificuldade de lhe conceder o benefício da dúvida quanto a se tratar apenas de uma forma extremamente destilada de ironia, como um absinto do humor misantrópico. Condiz bem com a postura que temos encontrado na maior parte dos ucranianos, salvas heróicas e emocionantes excessões. Talvez por ter tido aquela recepção, todo o grupo da excursão passou a viagem também meio emburrado, interagindo pouco entre si, como se tivesse se afinado no tom errado.


Mas, de qualquer modo, lá fomos nós, uma dúzia de abutres, buscando turismo e diversão onde há um quarto de século tanta gente morreu ou sofreu tão dolorosamente. Disfarçando mal nosso demasiadamente humano impulso de ver o circo pegar fogo, ou de visitar o que restou do circo que já ardeu, sob algum discurso humanista qualquer de homenagem ou reconhecimento do heroísmo alheio. Ou melhor, sem douração de pílula nenhuma. Simplesmente fomos lá e pronto.


Conduzidos por um motorista monoglota e igualmente enfastiado da vida, só nos restou por boa parte do tempo escutar a musiquinha de FM ucraniana que este colocou para preencher o silência da comunicação indesejada e impossível. Música pop local muito ruim mesmo... Por sorte, o guia que nos acompanhou ao chegarmos na zona de exclusão não foi o primeiro, mas outro bem mais simpático e agradável. Várias paradas, subidas e descidas da van, nos vários lugares para tirar foto. Se misturássemos a dúzia de câmeras fotográficas e as redistribuíssemos a esmo depois, pouca diferença faria.


Ao final da visita, um almocinho na cantina local bem razoável, se a ideia era tentar reproduzir o que era um rango de alojamento soviético naquele tempo.
E então voltamos à van, para mais duas horas de viagem de volta a Kiev, quase todos dormindo, como hienas locupletadas de carniça existencial, secretamente felizes por terem sido os outros os envenenados por radiação, e não nós, intimamente pensando que radiação no cu dos outros é plutônio.



quinta-feira, 31 de outubro de 2013

31/10 - Kiev

E pronto, cá estamos nós nem no terceiro, mas mais para o oitavo mundo. Num lugar em que virtualmente ninguém fala inglês, nem mesmo a tia que faz as vezes de recepcionista do hotel. A sensação comunicacional e estética é de ser um esloveno que acaba de chegar no Brás e, ao mesmo tempo que se surpreende um pouco com a enormidade de tudo aquilo, precisa se comunicar para descobrir onde, como e quando comer, dormir e se divetir, percebendo que não terá a menor chance de sucesso.


Passamos o dia como clones de Blache Dubois com mais melanina, sempre contando com a generosidade de estranhos para não nos fodermos completamente. Já na estação de trem, a senhora atrás do vidro balançava a cabeça com enfado, falava em seu incognoscível ucraniano, e dava a entender que havia algum problema com o que seria um ticket eletrônico que deveria ser trocado por bilhetes convencionais. Momento de cus piscando ensandecidamente, violentamente, já achando que havíamos tomado um golpe e comprado de uma falsa agência de viagens assentos inexistentes, e agora não teríamos como sair de Kiev. Mas um rapaz atrás de nós na fila deu uma força pra entender o que ela queria dizer, e para encontrar o guichê correto. Depois, o hotel simplesmente não era encontrável, escondido sem qualquer indicação no décimo-segundo andar de um predinho em uma área dos fundos de uma viela escura que estava. Mas, mais uma vez, depois de várias tentativas infrutíferas de conseguir algum tipo de informação, novamente um par de rapazes muito gente boa na rua parou tudo o que estava fazendo para telefonar para o lugar (!), conversar com a tia, pedir as informações e nos levar até a porta. Sim, a mesma tia que não fala inglês, e nos mostrou tudo na base da mímica. 

A despeito destes singelos atos de gentileza, a postura geral dos ucranianos é de mal-humor, desdém, absoluta falta de esforço para se comunicar minimamente. Como se fosse uma sociedade de funcionários públicos cronificados, ressentidos com a vidinha pequena e insuficiente que levam, e ainda mais com estes turistas folgados, que vêm fazê-los trabalhar e se lembrar da insignificância de suas vidas cinzas.



No Teatro Nacional, assentos esgotados par assistir a Spartacus, ballet de Katchaturian. E eis que então surge uma senhora suspeita atrás de nós, dizendo num inglês mínimo que tinha dois assentos vagos, inicialmente sem custo, mas pelos quais logo em seguida tentou disfarçar alguma casualidade ao pedir uns 11 euros. O que ainda assim não seria caro. Leva-nos em seguida para dentro do teatro, para nos mostrar os lugares, conversando algo incompreensível com os seguranças mal-encarados, e depois esclarece que improvisaria duas cadeiras de madeira sobre a área de corredor entre as fileiras mesmo. Malandragem pura, provavelmente alguma funcionária tentando faturar um dinheirinho extra com o golpe da cadeira. Provavelmente até conseguiríamos ver o espetáculo, mas a informalidade total, aliada à pervasiva incomunicabilidade, nos acovardou, e nada de ballet então. A Ucrânia é o terceiro país mais corrupto do mundo, parece que o Brasil nem é um dos dois primeiros.


Mas, no lugar, fomos a um bandejão de comida típica do lugar, escolhendo os pratos na base do apontar com o dedo e seja o que deus quiser. Não me desapontou, vou encher o saco da patroa para voltarmos.
E amanhã, o grande dia, tem Chernobyl!


30/10 - Amsterdam



Ano passado, fui eu fugindo do furacão Sandy nos Estados Unidos. Desta vez, foi a maior tempestade dos últimos 20 anos em Amsterdam que teve que fugir de mim, e conseguiu. Quando chegamos, só restavam umas tantas árvores arrancadas do chão nos aguardando, e foi o primeiro dia de sol ofuscantemente firme de todos nossos dias de Holanda.


Meus preconceitos são muitos e são graves, mas são outros. Nada tenho contra argentinos. Mas hoje quase mudei de idéia após ceder à lamúria da patroa por comer carne e pagar quase 20 euros por cabeça a troco de umas 3 bistequinhas ridículas de carneiro e uma porção de batatas-fritas medíocres. Com coca-cola a 5 euros o copão. Sério, tinha menos carne no meio daqueles ossinhos do que tem havido entre as pernas da presidente Dilma nos últimos 20 anos.


Mas pelo menos encontramos mais tarde um frozen yogurt memorável, ainda que caro, e uma doceria que vendia bossche bollen, um treco que minha mãe tem que descobrir uma receita e fazer de sobremesa todo domingo por todo o resto da vida dela. Serviu bem para matar a lariquinha depois de voltar de uma viagem a lugares a que não se vai comprando uma passagem avião. Se é que você me entende, mano. Super lemon haze...


E hoje se encerra a porção civilizada da viagem.... A partir de amanhã, é ladeira abaixo em direção ao terceiro mundo... Na Ucrânia, pelo menos, ainda deve rolar um friozinho. Depois, na Turquia, nem isto. Eu devia ter feito o contrário, começar por lá para terminar mais por cima.




terça-feira, 29 de outubro de 2013

29/10 - Rotterdam

E ainda mais um dia fugindo da chuva. Finalmente hoje passamos por uma coffe shop assim isolada, lá num cantinho, na periferia. Deve congregar toda a turma da vida química da cidade. 


A única coisa mais bocó do que visitar uma calçada da fama na cidade é passar horas caminhando pra chegar nela, descobrir que marcou o lugar errado no mapa, caminhar mais um montão até o lugar certo e ainda assim não encontrar as impressões das mãos e assinaturas em lugar nenhum. Mas o pato comido num restaurante chinês que estava no caminho foi saboroso.


Mais um dia, resisti bravamente à tentação de ir correr na rua. Em vez disto, me permiti, orgulhoso, uma sonequinha no meio da tarde, mas quase desabei em prantos ao ver que vou chegar 10 dias atrasado para o que foi a maratona de Amsterdam. 


À noite, filminho novo meio trivial do Woody Allen, com final em aberto, porque algumas coisa na vida não têm solução e muito menos final feliz mesmo. A diferença é que, no cinema, o filme acaba, e todo mundo volta pro vazio mais cotidiano de suas existências despropositadas. Na vida real, depois que a gente se dá conta do mais insolúvel e incontornável desespero de existir, o impasse ainda dura por mais umas 4 décadas, antes de escurecer tudo e subir a musiquinha com os créditos finais.

E amanhã tem mais chuva.