domingo, 3 de novembro de 2013

03/10 - Odessa

Bom, e hoje deu merda.
Digo, num certo sentido, dá merda o tempo todo, só os mortos e a samambaias não sofrem. Mas como deus é um cara sacana e cruel, com um senso de humor doentio e pervertido, às vezes a bosta aguda se sobrepõe às fezes de fundo, e voa tudo no ventilador da existência. 


Pela manhã chegamos ao local de onde sairia o passeio gratuito de Odessa. Se em Kiev a coisa já teve algo de meia-boca, aqui faz sentido que fosse um pouquinho pior. E foi. O cara simplesmente não apareceu. Enquanto apagávamos fotos antigas para liberar espaço na câmera, procurávamos por um cara com uma bandeira azul que não existia, sob o assédio de pessoas oferecendo cacarecos, excursões ou fotos com pombas e gaviões nos braços, e empurrando papeizinhos e propagandas contra nossos rostos, como varejeiras que cismavam em voar ao redor daquilo que logo em seguida aconteceria. E então, subitamente, as fotos não estavam mais lá. Memória da câmera mais vazia do que uma ampola retal depois da ingestão de 23 comprimidos de lactopurga. Ainda não sei bem como, havíamos apagado todas as fotos da viagem até o momento. Toda a lembrança de nossas férias restava agora apenas em nossos cérebros, para de lá ir desaparecendo gradativamente, rumo ao mais inelutável oblívio. 


O jogo do contente não parece dar conta. É muito provável que as fotos fossem ficar lá esquecidas numa pasta de computador para sempre, ou só servir para serem vistas num daqueles almoços chatos de família nos quais, na verdade, ninguém está com muito saco para mostar ou ver fotos. Mas, ainda assim, sua perda dá uma sensação de perda da própria viagem, já que aos poucos os detalhes dela desaparecerão de nossas sinapses, e agora não há nem mesmo fotografias das quais daqui a uns dois anos nos sentiríamos esvaziadamente desconectados, distantes, mas que poderiam ao menos remeter a um ou outro fragmento de lembrança ainda recuperável desta fossa mnemônica que é nosso cérebro e nossa própria identidade.

Hoje tenho um pouco menos de simpatia por aqueles que criticam quem viaja para algum lugar para fotografá-lo, mais do que para experienciá-lo. A experiência é efêmera, tudo o que dela resta é a memória, que também desbota, esmaece e se evapora, e então o que atesta que de fato ela aconteceu? Talvez por isto seja tão fundamental grudar chicletes embaixo de todos os bancos e mesas por onde passamos.... É essencial ancorar a presença, cristalizar o evento, marcar o espaço que ocupamos em algum momento com a cicatriz que nos for possível nele deixar!


E depois, à, noite, já um pouco mais resignados com a perda e esperançosos com ainda ser possível recobrar a informação de dentro do cartãozinho de memória, porque a vida é embebida nestas pragas que são a resiliência e as estratégias de defesa, fomos à Ópera. Balletzinho, o 'Quebra Nozes', por 3 euros por cabeça. Convencional até a pontinha do último pentelho da bunda da bailarina, com o som das pontas das sapatilhas batendo no chão só superado pelas falas e ruídos dos singelos ucrianianos ao osso redor, e o espoucar dos flashes das câmeras fotográficas comendo solto. Tosqueira pura. Valeu o quanto custou.

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